Aqui está, a Peregrina, fantasiada de Pierrete, num Carnaval da segunda metade do século XX.
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Sexta-feira passei por uma escola quando os alunos voltavam para casa. Estavam vestidos com fantasias de super-heróis, fiéis aos figurinos saídos das telas do cinema, de Branca de Neve e fadas à moda de Walt Disney. O Carnaval mudou. Sou do tempo em que as crianças ainda se fantasiavam de outros personagens além daqueles dos desenhos animados. Fantasias para meninos eram sempre mais difíceis, e meus irmãos aderiram, é verdade, a esse esquema de cinema muito antes de mim, principalmente para evitarem os trajes de tirolês, vestidos ano após ano. Embarcaram logo na de Super-Homem. Mas foram também xerife do oeste americano, sheik e uma grande variedade de piratas.
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Pierrete, 1922
Emiliano Di Cavalcanti ( Brasil, 1897-1976)
óleo sobre tela, 78 x 65 cm
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Nossas fantasias não eram compradas prontas. Eram pensadas em janeiro, logo depois da festa do Dia de Reis e repensadas levando em conta a praticidade, facilidade de desenho, beleza e conforto . Os trajes eram construídos aos poucos, costurados por mãe, avó, tia solteira, empregada, babá ou qualquer outra pessoa que pudesse usar agulha, linha ou cola. Saíamos nos 3 dias de Carnaval com as versões de trajes tradicionais que nossos pais imaginavam para nós. Aos tenros 2 e 3 anos (a mesma fantasia foi usada), fui uma sedutora odalisca. Depois fui baiana, cigana, índia, pirata, tirolesa e, já adolescente, Violeta Scragg, personagem dos quadrinhos do caipira Ferdinando, de Al Capp, cuja Corrida do Dia de Maria Cebola povoara a imaginação da geração de minha mãe. Além disso, como mostra a foto acima, saí num longínquo Carnaval de Pierrete. Mas de Pierrete? — podem perguntar… Essa fantasia não é de Colombina? Não, não, não… não, não. Minha mãe, professora de língua e literatura, não queria que eu me vestisse de Colombina, porque ela não tinha, como diríamos, assim um tão bom caráter… Preferiu me vestir de Pierrete, a forma feminina do Pierrô.
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O desepero de Pierrô, também conhecido como Pierrô Ciumento, 1892
James Ensor (Bélgica, 1860-1949)
óleo sobre tela, 117 x 167 cm
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O trio Arlequim, Pierrô e Colombina, originais da
Comédia dell’Arte, do teatro italiano do século XVI, aparecia em grande número entre crianças e adultos em outros Carnavais cariocas. Sua popularidade tem raízes mais recentes do que o século XVI. O tema, durante o século XIX, sob a influência do romantismo francês, ganhou popularidade em todas as artes, trazendo para primeiro plano o sofrimento de Pierrô, enamorado por Colombina, cujo afeto não conquista. O triângulo amoroso, a derrota de Pierrô para Arlequim, tornou-se, então, a variação favorita da antiga tradição italiana. Originalmente, cada qual tinha um papel específico, e o desfecho de suas aventuras teatrais podia sempre variar, desde que os personagens se mantivessem dentro do esperado. Arlequim era um empregado, um servo esperto, conquistador dos corações femininos, que desejava Colombina. Esta por sua vez, era uma empregada, frívola, inconstante no amor, e esperta nas suas conquistas, flertava com todos e não era de ninguém. Nem Arlequim, nem Pierrô originalmente conseguiam conquistar seu coração.
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Pierrô, 1918
Pablo Picasso ( Espanha, 1881-1973)
óleo sobre tela
Museu de Arte Moderna de Nova York
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Os três personagens, que voltaram a preencher o espaço imaginário da cultura européia nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX, estão hoje praticamente desaparecidos do carnaval carioca, porque não refletem mais as nossas preocupações. O amor não correspondido, sofrido, chorado deixou de ser um meio de se cantar nos 3 dias de folia. O Carnaval do passado tinha como parte de seu roteiro musical duas faces: as músicas irreverentes, licenciosas, às vezes repletas de
non-sense, que burlavam os limites morais vigentes e o lado sentimental que refletia os amores não-correspondidos, o sofrimento da dor de cotovelo, das brigas amorosas, da procura pelo par perfeito. As primeiras eram cantadas nas marchinhas agitadas, puladas, ritmadas no pé, como acontece, por exemplo, com o clássico
O teu cabelo não nega.
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Arlequim, s/d
Clarence K Chatterton ( EUA, 1880-1973)
Óleo sobre tela.
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Eram as marchas-rancho, os sambas mais lentos, as músicas que refletiam o outro lado da alma, retratando o desespero sentimental de um amor não correspondido, traído, sofrido. Para isso, a imagem do Pierrô era moeda corrente na poesia. Não fazemos mais um
Um Pierrô apaixonado,/Que vivia só cantando,/Por causa de uma Colombina/ Acabou chorando… Acabou chorando… Nem tampouco cantamos
Tristeza/ Por favor vai embora/ A minha alma que chora/Está vendo o meu fim. Sentimentos que refletem filosofias da vida amorosa, como aparecem em:
Eu perguntei a um mal-me-quer / Se meu bem ainda me quer/ Ela então me respondeu que não / Chorei, mas depois/Eu me lembrei / Que a flor também é uma mulher/Que nunca teve coração… já não são mais cantados ou frustrações como no clássico,
Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim./Ai meu bem, não faz assim comigo não! Você tem, você tem que me dar seu coração! Já não encontram forte eco na alma carioca
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Pierrô desconsolado, 1907
Witold Wojtkiewicz ( Polônia, 1879 — 1909)
Têmpera sobre madeira, 65 x 80 cm
Museu de Naradowe, Posnan, Polônia
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No século XXI, o romantismo sofrido, chorado, o amor não correspondido não tem mais lugar com foliões e nem mesmo nas composições carnavalescas. A “
tristeza que não tem fim, felicidade sim”, foi-se junto com as marchinhas carnavalescas, os lança-perfumes, o confete jogado sobre uma bela fantasia e as serpentinas de papel colorido; o triângulo amoroso daqueles personagens renascentistas parece falar a um público diferente. Carrega em si preconceitos passados, reflete um momento romântico longínquo, que não tem mais razão de ser. Éramos mais reprimidos, e sofríamos mais com os desencontros amorosos, dávamos peso às nossas tristes sinas, que se valorizavam quanto mais estivessem em descompasso com a alegria carnavalesca.
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A hora azul, s/d
Federico Armando Beltrán Masses ( Espanha, 1885-1949)
óleo sobre tela
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Hoje, somos mais livres em ação e sentimento. As mulheres conquistaram direitos, os homens responderam à altura. Como um todo, vivemos menos regidos por regras sociais. Sabemos, apesar de nem sempre aceitarmos, que ninguém é de ninguém: nem no Carnaval, nem o ano inteiro. Não precisamos esperar pelos 3 dias de folia para extravasarmos nossos amores; para expressarmos nossas frustrações amorosas, para darmos voz aos nossos sentimentos mais íntimos. Talvez este tenha sido o grande legado da popularização da psicologia. Não precisamos da loucura de domingo à
Terça-feira Gorda para pularmos a cerca, para flertarmos com um desconhecido, trocarmos de amor acreditando que escondidos pelas máscaras, podemos quase tudo sob a proteção do anonimato. A verdade é que podemos fazer tudo o que quisermos o ano inteiro.
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Pierrô, s/d
William Orpen ( Irlanda, 1871-1931)
aquarela
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Pierrô, sofrendo por amor, parece por demais trágico para conviver com a alegria extrovertida do carnaval de rua. A pesada presença de seu contínuo sofrimento, de seu abandono; os ombros caídos do desacreditado em si mesmo, não combinam com as novas regras sociais que ditam um estado de perpétua felicidade. Não condizem tampouco com a auto-estima elevada requerida pelos novos padrões sociais, pregados a quatro ventos nas revistas, nos jornais e na televisão. Somos todos lindos, bonitos, alegres e felizes. A julgar pelos slogans corriqueiros temos que nos sentir bem, a qualquer preço e a qualquer hora; estar orgulhosos de nossa aparência e de nossas conquistas; estar bem-resolvidos. Hoje, a tristeza do Pierrô, a profundidade de seu desconsolo acabam deslocados. Eles refletem um estado de alma ao mesmo tempo inocente e alheio, ambos sentimentos de pouca empatia para esta geração de foliões.
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Pierrô, 1977
Adelson do Prado, ( Brasil, 1944)
acrílica sobre tela, 73 x 50 cm
Coleção Particular.
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De fato, o final do século XX se caracteriza pela redução da imagem do Pierrô de uma figura trágica para a do palhacinho alegre e cantador, um boneco engraçadinho, mimoso, apropriado para os quartos de crianças e para as capas de cadernos escolares das meninas pré-adolescentes. Pierrô se despoja, a cada década da carga emocional que o abateu de meados do século XIX aos anos que antecedem o final da Segunda Guerra Mundial. Sua imagem, bastante fascinante para as abstrações do período Art-Deco, nas décadas de 20 e 30 , vai se estilizando à medida que o século XX chega ao fim. E perde, aos poucos, a tri-dimensionalidade emocional que o caracterizara no passado. Torna-se um exercício decorativo, um tema de geometria a ser explorado e consumido em massa, favorecendo os redondos pompons, o triângulo de seu chapéu a fofura de sua gola embabadada , a perpétua lágrima no rosto, — ou seria uma tatuagem? — aludindo à sua poesia através de um violão.
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Arlequim e Pierrô, mangá.
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Mas, para os que possam estar preocupados, deixe-me lembrar que isso não significa o fim de Pierrô, ou do trio a que pertence. O pêndulo fará seu percurso natural e voltará a trazer para o proscênio o trio italiano. Sua aparição no final do século XVI durou até meados do século seguinte; depois sumiu como tema nas artes gráficas só para ter um renascimento no século XVIII, nas pinturas de Watteau e de seus contemporâneos. Ressurgiu das cinzas no século XIX até meados do século seguinte. Quem estiver vivo daqui a algumas décadas verá a reaparição do trio, talvez com outros aspectos de suas personalidades enfatizados, para refletirem o gosto cultural da época, mas eles voltam. Quando personagens teatrais refletem características humanas verdadeiras, eles podem passar por momentos esquecimento, até que alguém se lembre de mostrá-los mais uma vez, mas com uma nova roupagem. É esperar para ver.
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©Ladyce West, Rio de Janeiro, 2011
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